terça-feira, 13 de setembro de 2011

As coisas como elas são

Sentiu como se o chão lhe fosse diluído em pó e sombra diante do verbo que não dispõe de pretérito. Sentira aquele mesmo torpor de demência por um sem fim de vezes, um carrossel girando sem parar intercalado por algodões-doces e maçãs-do-amor. As lágrimas brotavam mecânicas, uma quase obrigação do ser que sente, sofre e solfeja. As mãos debatiam-se na ânsia de buscar a oração mais apropriada para afastar o intransponível. Os primeiros minutos, loucura. As primeiras horas, letargia. Os primeiros dias, inconformidade. Estranhos animais que somos, aprendemos tal qual a raposa que comera carne envenenada, a prever o perigo e dele fugir. Resguardadas as devidas diferenças, ao menos podemos afirmar que aprendemos a lidar com a certeza do desespero. Ela se repete, anda em ciclos infindáveis e invictos. A dor que parece descabida acaba acertando as medidas e cabendo dentro do que lhe cabe em nosso viver. Quando decidiu que compreender não era uma opção e odiar não era a solução tomou as rédeas de sua vida de retorno e guiou seu trote pelo que lhe pareceu o ideal. Remexeu nas lembranças à procura das ações esperadas para tempos como aquele. Levantou os olhos e sentiu no canto da alma brotar aquela que seria a derradeira manifestação ante a sordidez com a qual lhe presentearam. As lágrimas, fieis companheiras, não secariam tão rapidamente. Percebeu mais do que depressa que o que lhe aconteceu despertou sua capacidade adormecida de sentir a dor que lhe cerca. Envolta pelo caos, submersa pelo dúbio, cega pelo desamor, decidiu mais uma vez atar os cadarços do destino e não desfazer dos raios de sol que insistiam em refletir um sem-fim de possibilidades. Primeiro, sacudiu com carinho a poeira dos retratos que enfeitavam o quarto. Nublados pelo descaso, eram a representação perfeita daquilo que foram juntos: uma bela imagem congelada pelas turbinas lépidas do dia a dia. Na sequência, mudou de lugar a cama. O ir e vir dos pés de ferro arrastando consigo o tapete produzia um emaranhado de acordes que machucavam os ouvidos acostumados a outros sons provindos do mesmo objeto. Não muito depois resolveu ouvir as músicas que lhe recordavam o que agora era uma foto escondida na gaveta do criado-mudo. Tremendo sem cessar, apertou as teclas que revelariam se as canções outrora tão cheias de sorrisos ainda lhe permitiriam ao menos manter a indiferença. Venceu mais essa etapa. Consciente de que os anos que cronologicamente a vida lhe dera afinal revelavam alguma sabedoria, decidiu seguir. Voltou a sorrir e percebeu que essa fora a parte mais simples até agora. Passou a sorrir por tudo. Borboletas, amigos, música. Amor, elogios, opções. Sorriu da dor. Faltava, no entanto, o passo derradeiro. Apenas teria a certeza de que superaria o terremoto que abalara suas certezas se aceitasse o desafio que suas bacantes imaginárias lhe propunham. Hesitou. Não poderia. Seria pedir demais de quem ama. "A prova para provar que amor não nasce sozinho". Aquela frase tomou seus pensamentos e dela não se desvencilhava por minuto algum. Quase uma obsessão, a ideia de sentir-se viva plenamente lhe perseguia intermitentemente. Acordava em meio à madrugada silenciosa ouvindo os passos de sua consciência ecoarem na mente vazia. Ele lhe fazia bem. Mesmo quando ainda comprometida e fiel, lhe agradava aquele menino jocoso deslizando chiste em suas vaidades. Chamara sua atenção desde o primeiro instante, mas não passara de uma mera percepção da presença de um ser cativante. Mantiveram-se em cortejo subentendido durante todas aquelas semanas: ela, fiel; ele, aleatório. A hora não poderia ser outra. Agora ou nunca. Tomara a coragem necessária diretamente do gargalo da garrafa. De tão doce a bebida, sentiu sua acidez abrandada pela ternura das fugas efêmeras. Ele aceitou o convite. Após uma infinidade de horas, ainda sentiu vontade de tomar nas mãos o celular e desmarcar seu futuro alegando enxaqueca. Não. Deixara passar a vida assistindo a tudo pelo camarote de sua covardia outras tantas vezes, dessa vez seria diferente. Fumou meia dúzia de cigarros, bebericou mais alguns copos, escovou os dentes, engoliu um chiclete e desafiou seus medos. A campainha tocou. Abriu a porta ainda em meio ao torpor da embriaguez e da culpa. Quem sou eu que faço algo que não devo? Quem és tu que mostra a face mas esconde os olhos? O convite para entrar, a conversa sem pensar, a certeza do que estava por vir. Adiou aquele beijo como quem reprime a mão do carrasco ante o piscar de olhos derradeiro. Colou seus lábios nos dele. Depois de tanto tempo, um beijo com gosto de incerteza. As mãos, trôpegas, buscavam alcançar algo inatingível para ambos. Quando pensou em gritar aos céus clamando o perdão por sua estúpida resolução, eis que algo lhe salta aos sentidos. A mão nos cabelos. Céus, era a mesma mão nos cabelos. Num átimo de lucidez percebera que a forma como ele lhe tocava os cabelos era a igual a todas as vezes que lhe deflagraram aquela carícia. Sem exceção. Percebeu, num repente misto de furor e desespero, que ao final de tudo as mãos os dedos os lábios os braços que tocam são os mesmos em qualquer lado da lua. Naquele segundo aprendera mais uma lição, mais uma didática a ser arquivada na memória do "com o tempo se aprende..." A sutileza trágica através da qual aprendera a interpretar mais esse ato da grande peça sem plateia que é a vida lhe fez sorrir com um dos lados da boca e derramar um pingo de pudor pelo canto de um dos olhos. A lágrima se dissipou junto ao suor que naquele momento já se manifestava entre os dois. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Cinco horas de desprendimento e clareza. Nos braços de um homem justo e sarcástico aprendera que o bailar de dois corpos perdidos no espaço pode, sim, ser a porta de saída de um túnel que gira silencioso e torpe em círculos sem começo nem fim. Adormecera em seus braços e em nenhum instante quis estar em outra companhia. Ainda que não fosse paixão, amor ou algum sentimento doentio semelhante, confortou-se em estar junto a alguém que apreciasse sua -ainda que momentânea- presença. Acordou de sobressalto com o ressonar já esquecido nos confins de suas lembranças. Foram meses de sono sereno ao lado de alguém que não lhe perturbava nem quando dormia. Passou a ver que a pior das agonias era justamente esse silêncio. Os sons produzidos durante o sono pareciam lhe sussurrar "está tudo bem", coisa que a ausência de ritmo e cadência onírica não lhe proporcionavam. Agradeceu em pensamento a chance que tivera de sentir-se lúcida, leve, até mesmo leviana. Percebeu, ainda, que não lhe agradava por completo a presença de alguém ao seu lado no leito. Queria a cama toda para si e para sua existência. Agora que percebera que pode existir para além dos umbrais das migalhas sentimentais alheias, queria sua dor e seu júbilo apenas para si. Agradeceu quando o despertador tocou e um beijo de despedida nasceu junto com o dia que raiava no horizonte. Despediram-se e tudo e todos seguiram seu curso natural. Voltou para o quarto, encostou a porta como de costume nunca faz, abriu a janela e fumou longa e pacificamente o primeiro cigarro do dia. Olhando de soslaio para as nuvens que ao dissiparem-se anunciavam o dia alaranjado que surgia, percebeu que suas pálpebras se fechavam sem pressa de abrir. Baforou ao ar suas verdades e seus medos, seus anseios e destemperos. Programou as atividades do dia e voltou à cama. Com todo o espaço para seu coração em pedaços, encontrou no calor deixado pelo corpo de quem não mais ali estava o remendo perfeito para sua alma. Deixou que o peso dos cobertores se somasse ao peso de seus medos e adormeceu tranquila. Despertou em definitivo já ao meio-dia com a malícia severa de uma criança que descobre joguete novo.

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