segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A camisa do meu amor

Ficou aqui em casa, atirada, esperando ser lavada. Tentei tomar cuidado, deixar a água correr calma, fazer o sabão remover as ranhuras do tecido como se fosse meu-teu coração. Da mesma forma que nós, não deu muito certo. Torceu-se ao revés, perdeu brilho e cor, amarrotou ao vento norte. A camisa do meu quase-amor desbotou como minhas lágrimas vespertinas. Dobrei sem muita convicção e guardei no fundo do armário, para nunca mais olhar. O estranho é que, da mesma forma que meus olhos não conseguem desviar da tua face, a camisa da discórdia teimava em saltar a meus olhos sempre que abria a porta do guarda-roupas. Uma insistência que agia à revelia da realidade. Dia desses, já mais calma da tempestade que se abateu, decidi -até agora não sei se por vontade, por necessidade ou por tamanha falta de pijamas limpos- usa-la após o banho. A camisa limpa no corpo limpo numa vida suja. Esperando o cheiro do sabão em pó consegui apenas aspirar o olor do teu corpo. Esse costume de não usar perfume artificial banha tuas vestes com o cheiro perturbador do teu eu. Um cheiro forte, penetrante, áspero e intenso. Fragrância de fazer bater mais forte a alma de quem o sente. Depois daquela noite, não tirei mais a camisa. Todos os dias espero ávida pela hora do banho para vestir uma parte de ti que ninguém pode tirar de mim. Um trapo roto, sem valor, que faz minha pele sentir-se mais perto da tua. Um devaneio quase infantil, uma demência senil, coisa de quem relembra um morto em vida. E esse cheiro que me desnorteia, além de estar gravado em mim, prendeu-se em tudo a volta: travesseiro, cobertores, colchão, fronhas, sala, quarto, sacada. Teu cheiro prendeu meus cabelos para o alto e arranhou os discos na estante. Fez voar a poeira dos cantos e soltou o carpete. Balançou as cortinas imaginárias e quebrou as persianas. O odor da tua vida impregnou cada parte do que me norteia. De manhã, quando desperto e visto meus próprios trapos, dobro com cuidado a camisa do meu amor. Guardo entre os dois travesseiros torcendo para que o oxigênio não desfaça minha mágica. Quando chego em casa, até disfarço. Vou cozer os alimentos, tirar o fardamento, jogar conversa ao léu. Mas não demora, fico tensa. Não tarda, vou correndo. Ajoelho diante do colchão, e com as mãos de criança que esconde doces na caixa de brinquedos, descubro meu tesouro. Num misto de desejo e temor, a constatação: ainda está lá. O cheiro doce da camisa do meu amor.

2 comentários:

Gugu Keller disse...

O amor faz a vida sempre extremada. Como, temos tudo. Sem, somos nada.
GK

Fayga Pâmela disse...

Quando irás escrever mais? Fico ansiosa para ler o que se passa nessa sua cabecinha. Escrevo aqui não me responde pelo FB. Bjus!