sexta-feira, 17 de junho de 2011

Um desabafo

Você pode me chamar de tudo. Do que quiser. De puta, de cadela, de monstro, de genocida, de idiota, de otária. É seu direito, sua posição, sua percepção. Mas não me chame de uma coisa: covarde. Sou eu alheia até mesmo ao que os que mais amo pensam de minhas ideologias. Não sou morta, ponto. Acredito nos meus ideais do mesmo jeito que você crê nos seus. Sabe o que nos diferencia? A forma como o que pensamos reflete naqueles que nos cercam. Há 50 anos estaríamos em lados opostos, como estamos hoje. Sabe qual a diferença? A sua posição, naqueles tempos, seria vista como a minha é tomada hoje. Sim. No meio em que vivemos e existimos, ver que não há saída é errado, é torto, é feio. Não há. Há paliativos, há formas de aplacar o sofrimento. Ontem vi uma mulher sem remédios morrendo. Não fui às ruas com minhas bandeiras gritar por ela. Juntamos 356 reais e compramos o que lhe faltava. Não resolveu. Não mudou. Acobertou a falha de um governo que não zela pelos seus. Mas ela não morreu. Ao menos não dessa vez. Ela disse obrigado, e isso não fez a menor diferença. Pra nós, quatorze pessoas que abriram mão de poucos reais para melhorar a semana de outro ser humano, isso não fez diferença. Nós apenas confortamos alguém que vive, sente e precisa como todos nós. Quando eu tinha dez anos passei fome, e nunca tive vergonha de falar isso pra ninguém. Eu não tinha televisão, nem geladeira, nem comida. Íamos à casa da vizinha, que tinha uma padaria, e ela fazia lanchinhos para mim e para minha vó. Essa mesma vó que hoje já é falecida sempre sonhou em me ver na faculdade. Ainda bem que teve tempo e assistir à isso, pois naqueles idos anos 90 isso seria impossível. Esse tempo passou, e passou à despeito de quem foi às ruas gritar por gente como eu. Hoje posso ir ao comércio e tomar café à meia luz. Muitos não podem, e eu sei que a culpa não é minha, nem sua, nem de quem hoje detém o poder. A culpa é de quem nos fez "humanos, demasiado humanos". A primeira cerca delimitou nosso caráter. E nesses tempos nem o dom da fala possuíamos. Evoluímos, mas entramos em crise por estarmos cercados por um universo hediondo. Quer saber? Nunca vai mudar. Esse tempo ruim passou na minha caminhada por que lutamos sozinhos por nossa comida, e também por que algumas pessoas boas nos ajudaram. As coisas aconteceram, assim como aconteceram para tantas outras famílias. Mas não por que a esquerda, a direita, o centro ou o meio nos ajudaram. Aconteceu por que não paramos de nos mover, em grupo, em bando, sem desistir. Unimos nossa ancestralidade animal e não aceitamos o fim. Ninguém veio estender o manto vermelho sobre nós. A vizinha da padaria nunca ouviu falar em materialismo histórico, mas tinha um coração gigante. Eu também tenho vontade de gritar quando vejo as pessoas com fome e frio. Por que eu já andei de tênis furados no inverno do Rio Grande do Sul. Não grito por que tenho a consciência racional de que meu grito não vai secar o pé das pessoas. Não defendo o assistencialismo, não defendo nada disso. Apenas ratifico que o homem é bestial, é desumano, é terrível. E a única coisa que resta é tentar fazer o bem acima de qualquer coisa. Pra quem você puder, como e quando você puder. Minha alma já foi retaliada tantas vezes pelo punhal das mesquinharias sociais que não consigo mais dissociar a maldade, nem mesmo entre os mais diferentes. As pessoas que vivem na Vila Brenner, em contêineres que mais parecem vagões de trem, não sabem e nem querem saber quem é a equipe de reportagem que foi vê-los ainda ontem. Chegamos lá, saímos, e avida deles continuo a mesma. Então por que estivemos por lá? Para sensacionalizar a miséria e acalantar a vida daqueles que não precisam viver como bichos? Não. Mostramos, sim, para tentar sensibilizar quem pode ajudar. O governo, como sempre, não fará nada. É assim e sempre será. Possa ser o PABC, o PBCD, o PCDE, o PXYZ. Dai o poder e descubra a fera. "Toda a forma de poder é uma forma de morrer por nada." Se quisermos realmente viver em um mundo melhor, isso deve partir de nós mesmos. É a mão que leva os dedos ao computador que deve amparar a mão de quem empunha a enxada. Tentar aparecer como o salvador da pátria nunca tirou a fome de ninguém. Quem tem, dá para quem não tem. Fato: a desigualdade não vai acabar. Ah, mas não vai mesmo. Não acabou na era clássica, nem no feudalismo, nem no mercantilismo, nem no capitalismo, nem no socialismo, nem no comunismo. Todas as formas de governo foram falhas. Sim, elas continuarão a existir, alheias às nossas vontades ou necessidades. Elas seguirão sendo corruptas e parciais, independente de quem as comandar. A única diferença é o tamanho do bigode e a cor do horizonte daquele que estampa a foto do palácio. Ontem uma senhora com obesidade mórbida morreu em virtude de sua enfermidade. O governo por meses se esquivou da situação. Ela deveria ter sido transferida à capital, mas a SMS não pode fazê-lo. Talvez se alguém a tivesse levado, sem questionar a responsabilidade que não era sua, ela estivesse viva. A situação nada fez, a oposição tampouco. Todos sabiam. Agora, já vejo cartazes enfeitando as redes sociais a esse respeito. Amigos! E digo amigos sem hipocrisia! A internet não serve para levar conhecimento a quem precisa, ela gira política dentro de um mesmo círculo, a bolha fechada de quem já sabe o que pensa. Quer mesmo fazer algo? Vá à rua. Mas não com seus tambores. Vá com a mente e o coração. A bandeira que foi posta na cabeça da juventude não tremula sobre quem mais precisa, e isso não pode ser esquecido.



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